Bernadeth Dickow* e Luiz Claudio Romanelli**
“O primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer: “Isto é meu”, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdido se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém”
Jean-Jacques Rousseau
A ocupação do território continua sendo uma questão importante, que gera conflitos, problemas urbanos e sociais, bem como reflete a questão econômica num país como o Brasil, onde a desigualdade é grande.
Todos sabem da importância da regularização fundiária no Brasil e em toda América Latina, cujo processo de urbanização foi muito intenso, notadamente nas décadas de 1970, 1980 e 1990, gerando grandes ocupações irregulares em todo o território nacional, principalmente nos grandes centros urbanos, onde o crescimento das cidades continua e a informalidade está mais concentrada, portanto, mais visível.
Todo marco legal da Regularização Fundiária Urbana, tem sido uma construção surgida do longo e amplo debate com a sociedade, desde a década de 1970 com Lei 6766/79, o Estatuto da Cidade – Lei Nº 10.257/2001, a Lei Nº 11.941/07, a Lei Nº 11.977/09, que, apesar de insuficientes, representam um avanço no seu ordenamento.
A proposta de lei específica sobre Regularização Fundiária, como norma geral que faz avançar o arcabouço legal, é correta e esperada, porém, da forma que está a MP Nº 759/16 paralisa todo o processo de regularização, inclusive a fase registral.
Sem discussão com a sociedade, nem mesmo com os setores envolvidos diretamente no processo, a MP precisa ser revista no seu inteiro teor. Tem problemas de conceituação, terminologia, redação, estruturação e concepção. Tanto que existem mais de 700 propostas de emendas, assim como a manifestação de mais de 95 entidades (Ministério Publico, Sindicatos, Movimentos, Universidades, Instituições que trabalham com regularização fundiária) por meio de um manifesto ao Brasil, contrário a forma em que está proposta.
A MP altera a denominação “assentamentos urbanos informais” por “núcleos urbanos informais”, desconsiderando as denominações consignadas na estruturação da política urbana brasileira e internacional (ONU), remontando os primórdios da política habitacional do BNH na época da ditadura cuja denominação dos grandes conjuntos habitacionais era “núcleos” habitacionais. Esta política habitacional teve consequências desastrosas para nossas cidades, gerando a necessidade de uma reforma urbana que começou a se desenhar e veio a ser parcialmente concretizada com o Estatuto da Cidade em 2001. Mas isso é só perfumaria perto dos problemas reais que estão veiculados na Medida Provisória. A discussão é antiga e a estruturação do arcabouço legal vigente reflete os avanços que foram conseguidos neste período por vários segmentos da sociedade, não é privilégio de nenhum partido político.
A MP 759/16 exclui o princípio da função social da propriedade e o objetivo da garantia do direito social a moradia conferido pela Constituição de 1988 que permeia o ordenamento urbanístico aos municípios.
Não trata de definições importantes como “área urbana consolidada”, ZEIS – Zona Especial de Interesse Social – e etapas de regularização, assim como deixa de fora mecanismos importantes para a regularização fundiária como a utilização do artigo 1.228, parágrafos 4º e 5º do Código Civil Brasileiro.
Por outro lado, definições como legitimação fundiária e legitimação de posse dispersas no corpo da MP, dificulta a sua compreensão, pois não estão devidamente conceituadas e diferenciadas.
Dispõe que a Regularização Fundiária Urbana – Reurb – abrangerá medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais, sem contudo, estabelecer nenhuma ação para esta última. Assim como não menciona a participação da população envolvida no processo.
Ora, não tem como fazer regularização fundiária sem a participação dos ocupantes dos assentamentos! Não é uma questão ideológica é uma questão prática!
Condicionar a aplicabilidade da Reurb-S (Social) a ato regulamentador futuro do Executivo, sem especificar qual instância e em que prazo, inviabiliza sua aplicação.
Quanto à gratuidade do registro, dentre as que estão previstas, falta “contratos ou termos administrativos, assinados com a União, Estados, Municípios ou o Distrito”.
O direito de laje é uma questão legítima a ser enfrentada considerando as características das moradias nos assentamentos urbanos informais brasileiros isso não há dúvida, porém, a MP não esclarece a situação de várias lajes no mesmo terreno e o mesmo proprietário, assim como quem vai avaliar a situação de habitabilidade, acessibilidade ou segurança da laje (laudo técnico) para a emissão do registro. Inovação bastante controversa se não for mais detalhada.
A “legitimação fundiária” parece ser uma tentativa de substituir a demarcação urbanística prevista na Lei Nº 11.977/09, porém se confunde sobre direito e o instrumento que o garante.
A legitimação fundiária autoriza o poder público “conferir” direito de propriedade, de área pública e particular para regularização fundiária de interesse social e de interesse específico, sem, contudo exigir os requisitos mínimos, como há, por exemplo, para a usucapião: prescrição aquisitiva, posse mansa e pacífica e dimensão da área a ser “adquirida”.
Cria duas “modalidades” Reurb S – de Interesse Social e Reurb E – de Interesse Específico, mas não distingue com clareza a ação do poder público nas mesmas. Esta distinção deve se assentar, minimamente, no período de prescrição aquisitiva da detenção/posse e também quanto à dimensão da “unidade imobiliária” (tamanho do lote), sob o risco da ação do poder público privilegiar as classes mais ricas.
Não há um conteúdo mínimo a ser encaminhado ao Registro de Imóveis para demonstrar ao Oficial a área a ser legitimada.
A previsão dos Municípios disporem sobre procedimento de regularização fundiária em seus territórios foi extinta, a expressa disposição de que a aprovação municipal correspondia ao competente licenciamento urbanístico e ambiental também foi extinta.
Tais dispositivos permitiram viabilizar regularização dos parcelamentos do solo de áreas consolidadas, sobretudo naqueles em APP. É um erro retirá-los da MP.
A MP “delega” aos Municípios a responsabilidade de cumprimento dos princípios de publicidade, continuidade, presunção e fé pública que antecede o registro. Contudo, o acervo da informação registrada é de responsabilidade do oficial registrador. Não há razão para se colocar ao município ou ao Distrito Federal procedimentos que são inerentes à função do registrador. No momento em que o Direito Brasileiro somente reconhece a aquisição de direitos reais pelo registro cartorial (Código Civil, art. 1.227), torna os oficiais como detentores da informação sobre a única forma reconhecida de direitos reais. Assim como foi excluída a possibilidade do Oficial do Registro de Imóveis promover tentativa de acordo, nos casos de impugnação. Também a mediação será promovida exclusivamente pelo Município. Por que deslocar essa responsabilidade do processo registral à instância municipal?
Não está clara a função da CRF – Certidão de Regularização Fundiária, criada na MP. É instrumento para declarar o direito de posse/propriedade reconhecido, mas não pode ser confundido com titulo hábil para transferir domínio ou posse. Há que se entender melhor o que se pretende com essa certidão. Ela é resultado da aprovação municipal, o que, por si, não é suficiente para garantir direito real!
A previsão de elaboração e implementação do Plano de Regularização Fundiária em etapas foi excluído, o que pode inviabilizar a regularização de muitas áreas.
É um equívoco afastar a aplicação da Lei 6766/79 da regularização fundiária. Existem muitos dispositivos desta Lei que são subsidiários à regularização fundiária que, sem dúvida, tem em seu cerne a regularização de parcelamento do solo. Exemplo: 1) art. 28 que trata da possibilidade de retificação do parcelamento do solo registrado; 2) art 40, § 1º que trata da possibilidade do município promotor da regularização promover levantamento judicial de prestações depositadas para contribuir com as obras eventualmente executadas na área regularizada.
Enfim há inúmeros questionamentos porque a MP está confusa e desconstrói um arcabouço legal, ainda que precário, que viabilizava a regularização fundiária.
É preciso abrir a discussão desse importante instrumento para toda a sociedade, revisar e construir uma norma que seja autoaplicável, que oriente procedimentos e avance ainda mais no Marco Legal vigente, até porque reconheço, no parlamento votamos leis escritas por “especialistas” que depois são inaplicáveis.
Paz e bem e ótima semana a todas e todos.
*Bernadeth Dickow, Socióloga, Mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP), especialista em Habitação e Regularização Fundiária.
**Luiz Claudio Romanelli, advogado, especialista em Gestão Técnica do Meio Urbano (PUC-PR/UTC), deputado estadual (PSB) e autor do livro “Direito a Moradia à Luz da Gestão Democrática (Ed. Juruá, 2007).