“Quando querem transformar dignidade em doença
Qando querem transformar inteligência em traiçã
Quando querem transformar estupidez em recompensa
Quando querem transformar esperança em maldição:
É o bem contra o mal
E você de que lado está?” – Renato Russo.
Que a fala inicial seja em homenagem aos companheiros da luta, injustiçados pela prisão ou pelo exílio. Todo tributo de apreço aos homens e mulheres da resistência democrática que foram punidos pelo arbítrio, mas consagrados pela gratidão e pelo respeito nacional. Nossa solidariedade mais fraterna aos órfãos de pais vivos, quem sabe? Mortos, talvez… Órfãos do talvez. Órfãos do talvez e do quem sabe. As viúvas com maridos vivos, quem sabe? Mortos, talvez viúvas do quem sabe e do talvez.
Essas palavras acima não são minhas. São do deputado federal Alencar Furtado, proferidas no programa eleitoral do MDB nos idos de junho de 1977, e que lhe custaram a cassação do mandato, com base no famigerado AI5, ditado pelo general Ernesto Geisel.
Trata, por óbvio, do flagelo que o país então vivia por conta dos mortos e desaparecidos da ditadura militar. Oposicionistas eram presos por órgãos da repressão do Estado, torturados, mortos e sumidos como se nunca tivessem existido.
Foi uma quadra infeliz da história, marcada pelo fim das liberdades individuais, pela censura, pela proibição das manifestações, extinção de partidos políticos, intervenção no poder judiciário.
Na ditadura nasceu o crime organizado, cresceu a promiscuidade entre a polícia e os marginais. A ditadura promoveu e depois anistiou torturadores, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto na semana passada, sem ser punido pelos crimes que cometeu. Ustra comandou entre 1970 e 1974, o Destacamento de Operações de Informações do II Exército, em São Paulo, que foi o principal centro de tortura, desaparecimento e morte de oposicionistas durante a ditadura. Assim como outros torturadores, Ustra alegou que apenas cumpria ordens.
Além de todas as atrocidades que ainda marca a vida do país, de forma indelével, a ditadura ceifou o surgimento de toda uma geração de novas lideranças que poderiam, de forma significativa, contribuir em todos os campos de atuação na construção de uma nação soberana. Retraiu-se o país por 20 poucos anos e muitos lutaram para a retomada do estado democrático de direito.
Foi uma luta árdua, difícil e hoje fico perplexo quando vejo por aí gente defendendo a volta do regime militar – que deixou um legado já pontuado nas palavras acima. Como também fico atônito ao verificar o resultado de pesquisa do Datafolha, que mostra que 54% dos moradores do Sul do país acreditam que “bandido bom é bandido morto”.
Sem dúvida, a sociedade está anestesiada pela violência, a tal ponto que está perdendo a capacidade de se chocar com a onda de crimes contra a vida. A violência virou algo trivial, corriqueiro, banal. Vive-se, sim, a banalização do mal, conceito criado pela filósofa alemã, naturalizada americana, Hannah Arendt.
Em 1961, Hannah acompanhou o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel, acusado de genocídio e crimes contra a humanidade durante a segunda guerra mundial. Dois anos depois do julgamento, a filósofa lançou um livro baseado em suas observações – “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”.
Hannah Arendt concluiu que Eichmann – que durante o julgamento ficou confinado numa cabine de vidro – não era um monstro, sádico ou demoníaco. Era um homem normal, um burocrata que cumpria ordens sem quaisquer questionamentos. Organizar o transporte de milhares de judeus para os campos de concentração era apenas uma questão de logística e ele cumpria as ordens de superiores sem pensar. Para ela, isto só podia ser compreendido pela banalização do mal que se instala no vácuo do pensamento, trivializando a violência. O homem na cabine de vidro era um homem comum, tão comum quanto a muitos outros. Era um funcionário cordato, servil e obediente e também um assassino eficiente.
Em paralelo ao que Hannah Arendt escreveu 1961, pode-se concluir que hoje, em pleno século XXI, 70 anos depois do fim da segunda guerra, volta-se a viver em tempos sombrios. Se na Alemanha nazista a omissão da sociedade permitiu a ascensão nazista e o holocausto, por aqui e em outros de países de todos os continentes, a criminalidade já não surpreende, mas revolta.
A tal ponto que há os ruidosos e furiosos defensores da volta do regime de exceção, os que aplaudem torturadores, os que apoiam o “bandido bom é bandido morto”. E o fazem descaradamente, sem qualquer pudor ou trava social. São homens comuns e não estão em redomas de vidro. Nesses tempos bicudos, delator vira ídolo, justiceiro vira herói e todos são culpados, até que prova em contrário. Consagra-se a intolerância. Trivializa-se a violência. Há um vácuo de pensamento. E há o silêncio dos bons. E é neste caldo de paranoia social que cresce e prospera a semente do totalitarismo.
*Luiz Cláudio Romanelli, advogado e especialista em gestão urbana, ex-secretário da Habitação, ex-presidente da Cohapar, e ex-secretário do Trabalho, é deputado pelo PMDB e líder do governo na Assembleia Legislativa do Paraná.